sexta-feira, agosto 09, 2019

the canibal quibe

(ou: desde sua morte, nunca mais comi um quibe ôco)

vovó sempre foi uma pessoa de poucas palavras, mas muita comida. sempre senti que tudo o que ela tinha pra me dizer, caso quisesse eu interpretar, teria que ser traduzido pela culinária, não só pela dificuldade idiomática geral, mas também pelo primor de sua linguagem específica. minha relação, então, com a comida dela, sempre foi injustamente sintomática de indignações afetivas não necessariamente relacionadas a este tópico.
ela, no fundo, só queria que eu comesse.
e ela ia longe pra conseguir isso. toda a lógica da comida árabe está em preparar os recheios e os envólucros destes. e ela era, de fato, recheada de orgulho pelo talento com que preparava seus recheios.

- vó, faz quibe ôco pra mim?
- você que é ôco

retirar o recheio de um quibe é tão impensável que nunca vi um exemplar que não tivesse sido cunhado nos dedos de vovó.

e para mim. só por frescura.

quibe por quibe, um carinho diferenciado, recheado da negação do que o faz diferente.

"eis-me aqui, quibe, forçado que sou a abdicar de minhas entranhas, para vosso caprichoso deleite"
e o quibe também disse:
"eis-me aqui, ôco, a partir dessa forma incomum, para negar o particular que te aflige"
e gloriosamente, sentenciou:
"serei, para ti, mesmo ôco, muito mais que um quibe"

vovó, hoje pensei que é isso a coisa que eu sou, né? esse mesmo quibe ôco?