quarta-feira, abril 15, 2020

padre meditando no segundo inferno

naquele dia, durante a oração da manhã, senti amor
um tipo de amor apaixonado e flertante, de outros tempos
da época em que eu ainda não era padre e era muito apaixonado por alguém
não era um amor por deus, não era por nada invisível
era morno, aconchegante e carnal
era meu elo com o mundo
achei até que era o sentido da minha existência
veja bem, não estou falando do ato de amar, mas de lembrar desse amor que tive
desse amor carnal e único, não abstrato
que, por mais que invisível, seu objeto era alguém perfeitamente visível!
e não havia nada de sagrado no objeto desse amor, mas havia nesse ato
ao contrário do amor que é sagrado, mas por essa divindade genérica

lembro de ter passado o resto daquele dia profundamente mergulhado nesse pensamento
anoitecendo, pude ver com clareza uma coisa que o sol ofuscava
o amor não poderia ser absoluto, não poderia ser universal, não poderia ser total
o que ele poderia ser? o laço que eu tinha com a singularidade absoluta que era meu amado
e isso tinha que ser, necessariamente, único e excludente
assim, eu o amei a despeito de todo o resto
e agora estou aqui.

não me arrependo, claro que não. faria tudo de novo, se fosse o caso.
depois de tanto tempo aqui, morto, pode-se dizer que estou em paz com o que fiz do meu tempo vivo.
cheguei à conclusão de que isso, pela qual fui condenado, realmente era o sentido da minha vida.
é uma coisa que justifica todas as outras
por isso, não me arrependo
e por não me arrepender, nunca vou sair daqui

ele também deve estar por aqui
nós pecamos juntos, afinal
sim, em algum lugar por aqui
mas não o procuro mais