segunda-feira, fevereiro 11, 2019

abortinho

não tenho medo de deus
de perder seu amor, de decepcioná-lo
no lugar desse medo existe a certeza do seu desamor
como decepcioná-lo, então? tento e tento e tento
mas não podemos decepcionar aquilo não nos quer
é possível, no entanto, confirmar seu desprezo
provar que somos tão hediondos quanto se espera de nós
e torcer para que, mesmo assim,
mesmo com toda essa delinquência afetiva auto-imposta
que deus aprenda, finalmente, a nos amar, que ele insista nisso

com vocês, povo de deus, faço o mesmo
insisto em conquistar vossa rejeição
porque foi nesse desamor que aprendi meu lugar
a querer essas coisas que só surgem depois de destruídas

afinal, por que motivo deus haveria de me amar?
se meu fracasso em ser seu filho é que garante sua preciosa perfeição?
eu te amo, deus, amo mesmo
e sei que ambas nossas identidades residem nesse contraste
esse é o nosso parentesco, nosso laço, nossa família
é engraçado que, no fim, tu precisas de mim

mas e se eu conseguisse, um dia, uma única vez que fosse
(e lutando para merecer o mesmo tratamento que tu reservas para mim)
ser amado de um jeito que tu não me fizeste para ser
de um jeito não merecedor
isso provaria que teu descaso nunca fora imprescindível
que era apenas o teu gosto
e ai tu deixarias de ser deus
e eu de ser teu filho
nosso contraste simbiótico arrebentaria
e eu poderia nascer dentro da nossa morte