segunda-feira, novembro 09, 2020

respondendo uma coisa

O que me atrai nos rpgs em geral (incluindo tabletop, videogames, narrativas solo de texto, visual novels) é o foco na construção dos personagens. Evidentemente, essa não é uma característica exclusiva dos rpgs.

Há, no entanto, certas experiências únicas ao rpg de mesa, que é o que me atrai especificamente para essa modalidade.

Como há um certo acordo entre os jogadores e o narrador, o enredo quase sempre foge de uma linha geral pensada, como seria numa forma de arte unificada. No rpg, conhecer os personagens, e conseqüentemente, conhecer os jogadores, é mais importante do que saber o final do enredo, por exemplo. Uma história pode ser ótima, e não dar um bom rpg, enquanto um rpg pode ser ótimo mesmo com um enredo "cliché". Da mesma forma, a ambientação e tema geral da narrativa é mais importante do que o enredo. Existe uma exploração da rotina dos personagens que não existiria na narrativa se não fosse em um rpg de mesa, simplesmente porque não é importante para ninguém além dos jogadores. Diferente do teatro, no rpg a platéia é formada pelos próprios atores.

Quero acreditar que rpgs são como um laboratório narrativo. O sentido mais superficial disso é que tanto os jogadores quanto o narrador estão em processo de implementação de idéias para suas criações, como que "testando as águas" uns dos outros, percebendo e se adaptando às reações dos outros sobre suas escolhas estéticas. Mas isso também acontece em grupos de escrita e leitura, por exemplo. O sentido mais profundo disso, que me parece único ao rpg, é a própria natureza imediata da mecânica narrativa de cada jogo. Digamos que, em uma dada sessão, a narrativa toda aconteça dentro do sonho de um dos personagens do grupo. o narrador, então, poderia combinar com o jogador desse personagem para que ele mesmo narre a sessão, já que ela se passa na mente do seu personagem. Mas imaginemos um exemplo ainda menor: o grupo vai visitar a casa da família de um personagem, e o narrador pede para o jogador descrever o quarto de infância do seu personagem para os outros. Esse momento, ainda que pequeno, separa completamente esse tipo de narrativa de qualquer outra. Um livro, filme ou videogame não pode pedir o input emocional do seu público ao mesmo tempo em que tece a narrativa, só uma mesa pode fazer isso (ainda que nem sempre faça, rs). Quando estamos de frente à uma obra de arte, estamos na verdade olhando para o passado, no sentido de que aquilo já foi iniciado e finalizado antes de termos tido contato com ela. No rpg é o contrário, estamos olhando, de certa forma, para o futuro, tentando forçar nossos interesses na narrativa.

Essas características básicas do rpg funcionam tanto num nível de como a narrativa é construída quanto em como ela é vivenciada. Acredito que o maior "truque" do rpg seja a possibilidade de explorar o que é relevante para cada personagem específico. Se, por exemplo, um jogador cria um personagem há dez anos não fala com sua mãe por qualquer motivo, isso precisa ser abordado durante o jogo. Em algum momento teríamos que ter uma cena sobre os dois, talvez muitas cenas. Como existem outros jogadores, precisamos dar um jeito de fazer isso ser relevante para os outros personagens também. Talvez a mãe deste personagem seja amiga de infância deste outro. Talvez ela seja relevante para a missão de um terceiro. Tentar resolver esses "fios soltos" em grupo é, pra mim, a maior graça do rpg. A narrativa precisa ser dirigida para resolver os conflitos dos personagens. Digamos, em outro exemplo, que aconteça um crossover na nossa mesa. Um personagem de outro rpg que jogamos aparece no que estamos jogando agora. Se fosse num filme ou qualquer outra mídia, seria só isso, um crossover, um cenário fazendo intersecção com outro. Mas imaginemos que eu tenha sido o jogador responsável pela criação do personagem que atravessou. Ele agora está na narrativa, interagindo com o meu personagem atual, "nativo". Em primeiro lugar, isso causaria um choque metanarrativo único. Como se fosse o estranhamento de se ver num espelho, mas o reflexo não corresponder, de ter uma parte de si vista fora de si, e com autonomia. Como ver um fantasma. Não é só o autor da história dizendo "olha só, na verdade eles vivem no mesmo mundo". Creio que exista um potencial imenso para esse tipo de experimentação nos rpgs, que já foi mais esgotado em outras formas de arte. Em segundo lugar, como resolveríamos isso, enquanto grupo? Quem vai interpretar quem? Vai ter revezamento? O grupo decide? O narrador controla? Podemos, ainda, pensar numa interação indireta entre os personagens. Digamos que no atual rpg nós somos oniromantes, changelings ou algum rolê sci-fi tipo inception. Estamos adentrando o universo particular do personagem que fez crossover, de forma que ninguém precisa interpretá-lo individualmente. Nós podemos "habitá-lo", e usar do conhecimento que dividimos do outro rpg nesse, na criação do próprio cenário e ambientação. Um outro exemplo seria: somos arqueólogos e estamos explorando as ruínas de uma cidade antiga. Daí em algum momento é revelado (ou os jogadores decidem in-game) que as ruínas são daquela cidade em que a gente jogou um rpg durante todo o ano passado e depois abandonou porque enjoamos. Esse tipo de pessoalidade da história, de intimidade que os jogadores podem ter com os temas e conflitos da narrativa, é simplesmente impossível de atingir fora do rpg, me parece.

Sobre mecânicas, acredito que as mais relevantes são as que de alguma forma definem o que os personagens são em relação aos outros, mas num sentido de delegar poder narrativo, não de contê-lo. No fundo a intenção é que as pessoas consigam imaginar o que elas estão tentando, e se surpreendam com as interações dessas fantasias com as fantasias dos outros. Então, por exemplo, imaginemos que em um rpg de ficção científica, os jogadores são a tripulação de uma nave. Um personagem é engenheiro roboticista, outro é piloto e navegador, o terceiro é médico e biólogo. Em vez das mecânicas servirem para dizer se o engenheiro consegue ou não consertar a nave, o navegador sabe ou não o caminho para tal lugar, o biólogo consegue ou não entender os organismos de tal planeta, ou seja, contendo o poder narrativo dos jogadores, elas deveriam servir para delegar funcionalmente esses poderes, para que esses personagens funcionem como chaves para acessar o conteúdo do cenário, em vez de riscos, de coisas que o jogador tem que "cuidar" para poder continuar jogando.